O dia começou cedo, e a animação já ia alta pela altura em que nos encontrámos na Sede. Alguns, vindos de mais longe – Amarante, Gaia, Muro/Trofa – já tinham lá pernoitado, e quando estávamos todos prontos, separámo-nos pelos carros, e fizemo-nos à estrada. A viagem fez-se bem, com música e boa disposição, e num instante já estávamos em Grândola a sermos recebidos por muitos colegas alentejanos, por aqueles que tinham chegado de véspera – dojos de Espinho e Maia – e pelo caloroso sorriso de Mestre Takizawa.
Vestimos as nossas verdadeiras roupas e alinhámos dentro do pavilhão. Foi aí que aquele sentimento de “estágio” começou a assentar. Olhar para ambos os lados e ver uma fila de karate-gi até perder de vista. Algumas caras conhecidas, amigos de outros encontros, mas muitos que ainda não tive a sorte de conhecer.
O mestre avança lá ao fundo. Todos ajoelhamos respeitosamente. O comando de mokuso vibra no ar e os olhos fecham-se. Ninguém fala, a concentração é palpável. E depois das saudações passamos ao taisou. Fazer o aquecimento correctamente eleva a fasquia para o resto do treino, por isso é dada total atenção a cada uma das partes do corpo. Do pescoço aos dedos dos pés, nada é negligenciado.
O primeiro comando é lançado: Kiba-dachi… Yoi! Baixamos todos em simultâneo e esticamos o punho fechado. Itchi. O tom de voz guia o nosso movimento, primeiro mais lento, mas depois a intensidade vai aumentando, obrigando-nos a desviar a atenção das pernas e a focar-nos em frente, para além dos próprios punhos, para o infinito que é o nosso alvo. Yame. Yasunde. E antes que possamos desconcentrar-nos, já ouvimos o nome de outra técnica. Passamos pelo jodan-age-uke, shutou-uke, sozinho e com mae-geri, morote-uke, mawashi-geri, entre outras. Normalmente repetimos cada exercício pelo menos uma vez, já que o mestre tem quase sempre algo a corrigir: “Cuidado para não cruzarmos os pés; sair só depois da voz; não fazer ajustes depois de terminar o movimento; manter a velocidade durante todas as partes da defesa; não fazer chamada com a mão, etc…”
Quando o chão estava pintalgado de suor, o Mestre disse que íamos fazer uma pausa, mas em vez de irmos todos buscar a merenda ou beber água, ninguém se mexeu. Foi muito bom encontrar-me no meio de uma situação assim. Como é que podemos sair se os nossos companheiros ficam para trás? Não podemos, não está certo, por isso ficamos. E pouco depois recomeçamos.
O treino para os kyus foi kihon intensivo, do básico para o mais complexo. Consolidar as bases e só depois acrescentar ligeiros detalhes no topo. Pormenores como manter a posição do tronco de lado quando se faz o gyaku-zuki, ou a forma de encolher os dedos no teisho-uke foram abordados nesta ocasião.
E depois da fotografia de grupo, onde éramos cento e dez praticantes, seguiu-se o treino dos cintos pretos. Ainda não posso participar, por isso fui assistir das bancadas, o que mesmo assim se revelou uma experiência muito enriquecedora. O kumite obriga-nos a confrontar o que existe dentro de nós, e muitas vezes isso revela coisas inesperadas, boas ou más. Vi cintos pretos mais antigos a tentar dominar mais novos, com palavras ou punhos, mas, felizmente, também tive a sorte de ser presenteado com kumite do mais belo que pode haver, uma união total, humilde e sincera de almas que apenas procuram evoluir juntas. E como elas sorriam e se abraçavam no final. O caminho pode não ser fácil mas sem dúvida que vale a pena, e é por aí que eu quero ir.
Mal saímos do carro, veio um senhor ter connosco para nos dizer que o “karate era por ali”. E como ele tinha razão. Karate também é convívio, e a julgar pelo bom ambiente que se fez sentir sobre a mesa, está fortíssimo. E com comida tão boa, como poderia ser de outra forma? Pataniscas com arroz, cozido à portuguesa, bacalhau à Brás, migas e outras delícias. Pelo meio de um ou dois “kanpais”, ouvi dizer que até o mestre Takizawa ficou impressionado com a comida.
E à tarde o treino recomeçou. Depois do taisou, o Mestre pediu-nos para alinharmos em várias filas para dar espaço para a kata. Taikyoku shodan primeiro, mas logo no início o mestre pediu para termos mais calma e sentirmos o resto do grupo, para não avançarmos sozinhos, apenas preocupados connosco, e apesar de existirem pormenores que podiam ser corrigidos, acho que essa foi a maior dificuldade, mesmo até ao final. E isso devia dar que pensar.
Terminadas as katas, alinhámos e aguardámos que chamassem o nosso nome para irmos lá à frente saudarmos o mestre que nos ensinou tanto.
E das bancadas assistimos ao treino dos cintos pretos com o bo. Novamente a diferença era marcante. Nos mais antigos notava-se uma ligeireza incrível, como se o bo não pesasse nada. Os movimentos eram fluidos mas precisos, a madeira já fazia parte do corpo.
E aos poucos foi terminando. Regressámos às roupas do dia-a-dia, despedimo-nos com promessas de reencontro, e no final só ficou quem ia ao jantar. Constou-me que foi de arromba! Mas isso só quem participou é que poderá testemunhar.
Foi muito bom, obrigado por tudo e até à próxima.
João Pedro Pio